quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Aceitação: temer menos e amar mais

featured image"Vamos amar mais e julgar menos."
Por Clarice Nunes
Coordenadora do Grupo É Possível
A vivência com alguém vulnerável em nossas famílias transforma essa vulnerabilidade (seja ela presente nos sintomas negativos e/ou positivos da esquizofrenia, sintomas de comorbidade ou de bipolaridade, dentre outros) no foco da nossa atenção, ostensiva ou sutil. O grau de preocupação a que chegamos ultrapassa a preocupação típica entre familiares. Agimos impregnados do que aprendemos com nossos pais, em nossos círculos culturais e sociais e não entendemos porque o outro não responde como queremos aos nossos estímulos ou apelos.
E aí estamos nós diante de uma “missão impossível”, vivendo uma dura realidade que sentimos como ameaça constante e que tira o chão debaixo de nossos pés. A lógica comum a qual estamos habituados não nos ajuda porque tudo parece ir contra o que aprendemos sobre o comportamento humano do ponto de vista do que é desejável e das nossas expectativas com relação a nós mesmos e aos outros. Nossa autoimagem fica arranhada e nos perguntamos: Como não percebemos antes a complexidade e gravidade da situação que o outro enfrenta? Como não soubemos e ainda não sabemos ajudar?
Durante conflitos graves, situações de risco, impasses, nós ficamos perdidos. Acentuamos nosso sentimento de impotência. E emerge aquela sensação de fracasso diante de cada tentativa de manejo que não funciona. Nossa esperança escoa pelo ralo da descrença levando junto o tão esperado “final feliz”. Sem êxito, nosso ânimo mingua. Crescem as dúvidas sobre a nossa capacidade de lidar com os eventos a nossa volta. Tentamos o que podemos. Nós nos “doamos” ao outro até ficarmos revoltados, exaustos e desesperançados em nossa tentativa de proteger, controlar, manipular uma situação que incessantemente foge ao nosso controle. Mergulhamos internamente numa luta feroz entre “tenho que conseguir” e “isso não pode acontecer”. Essa luta está carregada de emoções intensas: muito medo, raiva, angústia. Por quê a vida é tão injusta? Por quê isso está acontecendo comigo? Esses estados internos nos confrontam com a nossa incapacidade de aceitação. Como aceitar algo tão doloroso, que frustra nossas expectativas, nossas concepções de realização e felicidade na vida?
O primeiro tempo da aceitação
O primeiro tempo da aceitação é reconhecer que não aceitamos. Não queremos viver a experiência que as circunstâncias nos impuseram. Não queremos pagar o preço de “carregar alguém nas nossas costas pela vida afora”. Não queremos olhar para nossas críticas e julgamentos que reforçam a culpa e a vergonha que sentimos por ter ao nosso lado alguém tão “imperfeito”, que não se adapta à vida, não apresenta projetos ou, quando os têm, não consegue realizá-los.
O segundo tempo da aceitação
A crise, que a todo custo quisemos evitar, chega. Sentimos, então, que estamos no limite da própria frustração. Nosso desejo é “chutar o balde” porque não aguentamos mais. Ainda não temos consciência da parte que nos toca de responsabilidade na crise já instalada. Essa desistência pode evoluir em diferentes direções: a resignação, que traz consigo a amargura da fatalidade, a crença na impossibilidade de qualquer mudança; a alienação em relação ao outro, o que nos casos extremos significa abandono concreto; a entrega. A entrega é uma suspensão da ação, mas não de qualquer ação. Nós paramos de nos debater. Renunciamos à nossa vontade de controlar a vida. É quando dizemos internamente “seja o que Deus quiser” ou, de um modo agressivo: “Foda-se!”. Pela primeira vez não só aceitamos, mas sustentamos nossa impotência. Não saber o que fazer é um fato real. Diante do inevitável, afrouxamos a tensão que nos dilacerava entre o “tenho que conseguir” e “isso não pode acontecer”. Curiosamente o pequeno grande “milagre” acontece: no meio do turbilhão interno, a calma se instala. Ficamos num estado de suspensão, do tipo: “deixa vir”.
O terceiro tempo da aceitação
Afinal, conseguimos ver como depositamos nossa frustração no outro, negando não só nossa rigidez em lidar com os eventos que nos sucedem, mas nossa própria cegueira diante de recorrentes julgamentos do que o outro deve ser e como deve agir. Sentimos que não estamos vivendo a nossa vida. Buscamos informação e suporte, médicos e terapêutas, mas renunciamos à busca de qualquer salvação. Iniciamos, passo a passo, porque não existem atalhos, o nosso trabalho pessoal: desidentificar-se do outro; reconhecer nossas próprias necessidades e autorresponsabilidade em atendê-las; acolher a pessoa vulnerável nos seus próprios termos, como ela é e não como esperamos e queremos que seja; sentir a dor sem se agarrar a ela transformando-a em sofrimento; (re)aprender a lidar com cada novidade que esse relacionamento específico nos traz.
A aceitação é paradoxal. Não depende só da nossa decisão, da nossa vontade. Ela é o resultado indireto de todo um trabalho interno, que se reflete no externo, e que tem a ver com a maneira pela qual mudamos nossa representação de nós mesmos e do outro. Ela é a compreensão que permite a abertura para lidar com uma mudança de foco: não se trata só da vulnerabilidade do outro, mas da sua humanidade e de suas possibilidades de realização dentro das limitações que enfrenta. Algumas limitações são objetivas. Outras, imaginárias. Aprendemos a discriminar umas das outras. Corremos com menor temor o risco de cometer erros. Nossas motivações construtivas reconhecem em todas as dificuldades estados temporários. Lidamos com o medo sem que, no entanto, ele nos domine. Nossa angústia diminui e percebemos que ainda podemos nos sentir felizes e realizados.
Como isso é possível? Identificar nossos limites sem ilusão é uma libertação do sofrimento. É uma liberação do nosso poder de intervir na vida do outro, quando ele necessita, de modo a considerar suas metas maiores como ser humano e não apenas suas restrições pelo estado de vulnerabilidade no qual se encontra. Aprender a aceitar que estamos lidando com o desconhecido pede a paciência e a humildade de apenas abraçar a vida com toda a sua “imperfeição”. Para que acompanhemos filhos, maridos, espôsas ou irmãos na direção da saúde, sem adoecer, precisamos nos desligar amorosamente. Em uma conhecida clínica do Rio de Janeiro circula um folheto que esclarece o que é ou não um desligamento amoroso. Destinado aos familiares de pessoas com dependência química, pode muito bem, de um modo ligeiramente adaptado, aplicar-se às diversas situações de vulnerabilidade.
Desligamento amoroso
“Não é deixar de amar. É compreender que não posso fazer pelo outro o que ele precisa fazer.
Não é cortar a comunicação. É a admissão de que não posso controlar uma pessoa.
Não é facilitação. É deixar que o aprendizado aconteça através das consequências naturais.
Não é tentar mudar ou culpar o outro. É se importar com ele.
Não é tentar consertar. É dar apoio.
Não é julgar. É permitir que o outro seja um ser humano.
Não é ficar controlando os resultados. É deixar que o outro influa no seu próprio destino.
Não é ser protetor. É permitir que o outro encare a realidade.
Não é azucrinar, rejeitar ou discutir. É descobrir nossas próprias limitações e corrigi-las.
Não é ajeitar de acordo com os nossos desejos, mas viver cada dia que vier cuidando de nós mesmos.
Não é nos arrependermos do passado. É crescer e viver o presente.
Não é negar. É aceitar.
É admitir a impotência, pois a solução não está apenas nas nossas mãos.
É temer menos e amar mais”.
Texto do blog Entendendo a Esquizofrenia: http://entendendoaesquizofrenia.com.br/website/?p=6297

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