Abaixo dois artigos publicado no jornal Zero Hora sobre a Reforma Psiquiátrica, os quais recomendamos a leitura
Zero Hora, 17 de agosto de 2014 | N° 17893, página 30
SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA, POR MARCOS ROLIM*
A edição de Zero Hora do dia 13 trouxe opinião contra a Lei da Reforma Psiquiátrica do RS. No texto, o autor afirma que a Lei Estadual 9.716/92 “expulsa o doente mental das instituições consideradas retrógradas”, o que teria promovido o abandono dos pacientes nas ruas. Mais adiante, o autor – presidente da Associação de Psiquiatria do RS – diz que “nada respalda a determinação absurda de fechar leitos psiquiátricos ao invés de qualificá-los”. Lendo isso, me dei conta de que, passados 20 anos da promulgação da primeira Lei de Reforma Psiquiátrica do Brasil, já haveria tempo para que o autor do artigo pudesse lê-la. Sim, porque, para dizer o que disse, é imprescindível que nunca a tenha lido. Há outras hipóteses, claro, mas todas piores, razão pela qual as desconsidero. A Lei 9.716/92 não determinou “fechar leitos” (sic). O absurdo só existe na imaginação dos seus críticos. A lei tampouco expulsou alguém de um hospital. A lei, pelo contrário, manda abrir leitos psiquiátricos, mas em hospitais gerais. Primeiro, pessoas acometidas de doença mental internadas em hospitais gerais não serão tão expostas ao estigma social como as internadas em manicômios. Segundo, hospitais gerais possuem estrutura complexa e profissionais de diversas especialidades, o que assegura melhor atenção, notadamente quando consideramos as comorbidades. Um pequeno esforço de pesquisa mostraria que a demanda por internações de doentes mentais vem caindo, ano a ano no RS, exatamente porque, desde a Lei da Reforma, se organizou uma rede de atenção em saúde mental, com os Caps e outros recursos comunitários, que é muito mais resolutiva e que tem atuado com especial incidência na prevenção ao surto psiquiátrico. Esta dinâmica contraria os interesses dos donos das clínicas e hospitais psiquiátricos, para quem o aumento das internações, em número e duração, sempre foi – por coincidência, claro – funcional ao seu faturamento no SUS. Mas, então, por que faltam leitos psiquiátricos? O motivo é sabido, embora dele não se dê notícia. O que ocorre é que não dispomos de rede pública capaz de atender à demanda em alcoolismo e drogadição, o que produz enorme distorção de demanda. Não temos, tampouco, política pública minimamente eficiente para a prevenção do consumo de drogas. Sem ter para onde encaminhar os dependentes químicos, as famílias buscam o Judiciário, que determina a internação em hospitais psiquiátricos. Já é hora de o Parlamento gaúcho se debruçar sobre este tema, mas não para retroceder na reforma, como desejam os proponentes da indústria da loucura.
*JORNALISTA
Zero Hora, 20 de agosto de 2014, N° 17896. página 25
VERDADES SOBRE A REFORMA DA ASSISTÊNCIA PSIQUIÁTRICA, POR CÉSAR AUGUSTO TRINTA WEBER*
A OMS estima que as doenças mentais afetem mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, cerca de 23 milhões de pessoas podem necessitar de assistência psiquiátrica. Dados do Ministério da Saúde revelam que entre 2001 e 2013 foram fechados 21.435 leitos psiquiátricos no país. Nos hospitais gerais, existiam, em 2011, 3.910 leitos psiquiátricos, quantitativo insuficiente, sem contar que em muitos desses hospitais o número de leitos varia de um a três, o que os torna tecnicamente e financeiramente inviáveis. O crescimento populacional e a epidemia do crack trazem a constatação diária de que as emergências psiquiátricas estão lotadas e que não há leitos psiquiátricos ou serviços substitutivos em saúde mental suficientes. Prova cabal é que atualmente, em todo o Brasil, existem somente 28 Caps/AD tipo III (que funcionam 24 horas) para o enfrentamento do abuso e da dependência de drogas. Os indicadores mais otimistas revelam que entre 75% e 85% das pessoas portadoras de transtornos mentais não têm acesso a assistência de qualidade no país. Apesar da realidade de abandono e desrespeito ao doente mental, a Lei Estadual 9.716/92 – que prevê a sua reavaliação quanto aos seus rumos e o ritmo de implantação, em cinco anos da sua publicação – é ignorada na contramão dos acontecimentos. A experiência norte-americana de desospitalização e desinstitucionalização pode ser bem ilustrada pelo questionamento do juiz Steven Leifman, da 11ª Vara de Justiça de Miami (Flórida, Estados Unidos): “Se fosse perguntado à maioria das pessoas onde estão os doentes mentais em nossa sociedade, elas responderiam que estão nos hospitais psiquiátricos do Estado”. Segundo o magistrado, elas estão equivocadas. “Eles estão em nossas prisões.” Por aqui, esse fenômeno de transinstitucionalização se materializa na população de moradores de rua, entre os quais muitos são reconhecidos como egressos dos hospitais psiquiátricos. Enquanto isso, para a OMS, a falta de um tratamento adequado à saúde mental faz com que os transtornos psiquiátricos ocupem posições de destaque no ranking das doenças que mais atingem a população mundial.
*Médico
CÉSAR AUGUSTO TRINTA WEBER
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